A PEQUENA GAIVOTA
Dezembro, 2020, início do verão.
Assim a vi: miúda, novinha, talvez em suas primeiras incursões de voo solo e ainda inexperiente de o que poderá passar no cortejo da vida. Assim vi a pequena gaivota que pousou na faixa espelhada da areia umedecida pelo refluxo das ondas e ali ficou, a olhar ao redor.
Bonita, aquela manhã de céu não plenamente azul, mas em que as nuvens coadas, esgarçadas, tênues, permitiam bastante claridade e calor do Sol a quem disso necessitasse, pudesse, e quisesse desfrutar.
...Mar de águas límpidas: verde-água definido, onde, no bem raso, pequenos siris e corcorocas se banhavam à busca de não sei quê.
...Areia branquinha, semelhando de praia virgem.
...E a brisa? Acariciante, branda... no entanto, enganosa!, pois disfarçava torridez das radiações solares no lombo dos que a desfrutavam. Peles não acostumadas se tornariam crocantes, na certa, se abusassem. (" - Oh, senhores abusados! Não seja a brisa culpada por esfolar seus cangotes e cimos, que já por muitas e com muitas coisas se esfolam!")
A pequena gaivota pousou sobre o seu reflexo; e eu (que às vezes me imagino telepata) assanhei-me e lhe perguntei: " - Em que pensas tu, pequena gaivota?". Mas nem lhe dei tempo para retrucar (" - Ora! quem sois vós, senhor de cãs brancas e boné de marinheiro?"), pois me antecipei à sua possível irritada réplica, e rematei " - Já sei, já sei! Lamentas a invasão assaz rápida destes seres tão... tão desgraciosos - como eu! - que por aqui circulam e cedo tornarão esta bonança em desordenança!..."
Lancei o repto e por alguns segundos esperei reação da juvenil avezinha, certo de nossas ondas telepáticas se entrosarem, ainda que fôssemos personagens tão diversos.
...Mas, foi em vão.
Dez, talvez doze metros nos distanciavam; ela, à borda das ondas molhando os cambitos, divagando; eu, à sombra de sombrinha de praia, bebendo água de coco, especulando. De onde estava, a distinta não se arredou um miniminho, deixando evidente que não se importava comigo; e movimentava a cabeça de um lado para outro, como descrente de encontrar o que procurava.
"- ...E o que procuras? se aí mesmo, perto de ti, nas águas sem profundeza, miúdos peixes recreiam a olhos vistos e tu, criatura, não lhes dá importância! Com que te preocupas?" - arrisquei novo desafio seguido de uma graçola: "...se é dado aos irracionais terem preocupações!" - coisa grotesca, bem sei; porém, atacavam-me coceirinhas de implicância sem sentido.
Ela não me deu bola; ou por não estar nem aí para telepatia, ou por não querer jogar conversa fora.
Levantei o cenho, cìnicamente; meus lábios moldaram-se em sorrisinho debochado. Esperei...
...Esperei e senti que, por mais insistisse, aquele serzinho frágil não entraria em confronto comigo. "- É!... Deixe isto pra lá!" - murmurei, desapontado. Tive que me conformar com seu silêncio, e mais: também comecei a movimentar a cabeça, de um lado para o outro, sem nenhuma lógica (ou, talvez, pelo desaponto), à procura de... nada! Tivesse voltado os olhos para a tela escura do celular desligado (faço-a de espelho que me serve para ajeitar os cabelos e apreciar a bela figura) veria nela refletida a "cara de tacho" idiota e desengraçada de um inexpressivo representante dos "intelecto-bípedes" habituais frequentadores daqueles fofos tapetes arenosos.
(...)
Nem muito breve nem nuito longo foi o tempo que me concedi a beber água de coco. Entrei em devaneios (se devaneios são as coisas vazias que me invadiram o andar de cobertura), como, por exemplo, a reparar protuberâncias (muitas) e magrezas (várias) que desfilavam em idas e voltas nas quenturas daquela manhã aquecida. E enchia-me de afagos, de autocongratulações por não ter silhueta nem tão proeminente nem tão desprovida de recheios como tantas circulantes naquela passarela.
No ínterim, a criaturinha continuou desfrutando das mansas marolinhas rebrilhantes que lhe refrescavam as canelas.
A alguém que passa pergunto as horas:
"- Meio-dia e cinco!"
Agradeci, sorvi o último gole que o coco me oferecia.
Bom! Era hora de ir ao encontro das ondas para... "fisiologar" (!), pois ainda enfrentaria caminhada de vinte minutos dali até meu recanto - e bexiga de gente idosa não aguentaria a epopéia; a sunga não conseguiria disfarçar o escoadouro ("- ...pois essa família tem bexiga curta! - diria minha mãe).
Foi só eu me levantar, e a criaturinha de Deus ficou atenta para as próximas cenas da novela.
Como um ceramista que molda caprichadamente seus vasos com as mãos espalmadas, acariciei a pança já um tanto repolhuda e flácida. Com os polegares ajustei o cós da sunga, puxando-a para cima a modo ficar mais próxima do umbigo. E dei o primeiro passo em direção ao mar.
Não tendo mais dúvidas quanto a uma possível aproximação, a pequenina aprestou-se: abaixou a cabeça, encostou toda a extensão do bico no piso socado de areia molhada, bebeu (?), ligeira, pequenos goles de água salgada no enfraquecido refluxo da onda, taxiou em curta carreira, abriu as asas...
...e avoou!
(...)
Fui ao mar, lancei lá pequena dosagem de uréia que me era proveitoso e necessário lançar, em seguida voltando à sombra da sombrinha como se tivera ido às bordas do Atlântico apenas para me refrescar da amigável soalheira - visto que convinha disfarçar o ato com esparramos de água nos cabelos, ombros e sovacos, além de ameaços de nado livre em profundidade que me não fugia dos pés.
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A pequena gaivota abriu asas e voou, pegando rumo para a enseadinha atrás do Forte, onde outras gaivotas, mergulhões, e também pombos, e também urubus, e barcos frágeis, e redes recolhidas, e velhos pescadores se encontram diariamente.
Seu voo foi rasante e provocador: piando, piando, deixou no ar mensagem que prontamente decodifiquei:
"- Melhor sair antes que essas cãs brancas em seu boné de marinheiro, andar vagaroso e claudicante venham a me abordar com perguntas tolas!"
(...)
De tudo, ficou a certeza: a pequena gaivota e eu éramos telepatas!
(...sim! Acho que sim!)
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