A SUAVE QUEDA DO LONG-PLAY
"- Oh, velha "Smith Corona" portátil!... que saudade!" - ele murmurou. Estava só. Sem ninguém por perto para ouvi-lo continuou falando para si mesmo: "... - Mas, enfim, são as mudanças... Outrora, também as máquinas de escrever roubaram de muitos o prazer dos manuscritos, embora lápis ou canetas tantas vezes lhes causassem dores e calos nos artelhos..."
Ali, a sós, saudoso, sem disposição (por que não dizer, desanimado?!) para sentar-se ante o notebook, lousa moderna que o obriga a digitar, em vez de datilografar; ali, ao entrar na saleta a que chama "minha biblioteca", Rosalírio Flores encontrou o televisor sintonizado num desses canais de música: "Easy listening" - era o canal; e a música que então se ouvia: "Why do pass me by".
(...)
...("Why do pass me by"... (Ele gosta mais do título francês, original: "Vous, qui passez sans me voir"*, que desde a juventude lhe traz calor ao coração; música tocada por Jean Paques*, pianista de interpretações "aveludadas", suaves, que muitas e muitas horas de felicidade lhe proporcionou nas domingueiras do Clube Azul, quando dançava de rosto colado com a primeira namorada.)
(...)
Há muito Rosalírio não escrevia, não conseguia dar continuidade a tudo que lhe vinha à cachola. E ao ouvir a canção, por um instante ficou "flutuando", como se um viajor do tempo, vendo-se dançando com a amada, há anos e anos passados... Veio-lhe esboço de sorriso aos lábios... discreto travo emocional à garganta... eventos que lhe trouxeram umidade aos olhos. "Vous, qui passez sans me voir"... - cantarolou.
..."Você, que passa sem me ver... que passa, que segue sem me olhar, sem me dar importância"... "Why do pass me by"... Qual seja a tradução, qual seja a versão, no entanto, as desesperanças do poeta letrista - mágoas lançadas num corpo musical - em nada se aplicavam a Rosalírio:
..."Vous, qui passez sans me voir
"sans même dire bonsoir
"donnez-moi un peu d'espoir ce soir
"J'ai tant de peine." (...)
... - porque a melodia... a melodia, sim, é que o fazia dançarino, um feliz dançarino, que amava, que era amado...
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(O jovem Rosalírio amava e era amado. Por causa dos bailes e domingueiras, ouvindo piano aveludado, dançando músicas românticas; por causa dos bancos da praça, das sessões de cinema, das pequenas rusgas logo resolvidas; por causa das viagens mensais de volta à cidadezinha para um fim de semana tão ansiosamente esperado; por causa, enfim, do amor correspondido e da confiança existente entre dois apaixonados, a namorada não fez Rosalírio aguardá-la um minuto sequer, numa época em que era costumeiro as noivas castigarem os noivos fazendo-os aflitos expectantes junto ao altar - pois, exatamente na hora marcada, o velho harmônio da igreja encheu a nave do templo com os acordes da marcha nupcial!)
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Na "sua biblioteca", Rosalírio remeteu-se ao passado, aos dias em que, chegando do trabalho, o que mais desejava era espichar-se no sofá da sala, apagar a luz e dorminhar ao som duma vitrola, ouvindo a suave queda do long-play no prato do toca-discos ...pleeeéc... plafff... o deslisar da agulha na borda do vinil ...issssssssss... o "Clair de Lune"*... o "Largo, de Xerxes"*... enquanto seus olhos entregavam-se ao magnetismo da luzinha verde à testa da vitrola, presos àquela "...pequena estrela radiosa em céu profundo e escuro...", até cair em sonolência. ... Sim, era o que mais desejava... Entretanto, a sala era pequena... e já naquele tempo os televisores iam tomando espaço... Não possuir televisor era ser atrasado... Assim, não havia escolha...
...Logo, por força do modernismo e da atualidade, e não por renúncia às coisas que tanto influiram na união do casal, entronizaram-se na sala os teleteatros, as telenovelas, as garotas-propaganda...
Restava a Rosalírio a leitura dos livros que possuía, num quarto transformado em saleta, embrião dessa "sua biblioteca".
A vitrola? viria mais tarde, quando, de algum modo, houvesse espaço (pensava).
...Porém, veio primeiro a viuvez da sogra, que, por isso, foi com eles morar. Vieram depois os filhos, a necessidade de se ter uma empregada...
(...)
Vieram, mais tarde, os soundboxes, pickup, receiver, que se arrumaram nos cantos de paredes ou empilhados em móveis já existentes.
...Não eram a mesma coisa... Não havia a luzinha verde na fronte da vitrola; não se ouvia a suave queda do long-play ...pleeeéc... plafff... issssssssss... o "Clair de Lune"... o "Largo, de Xerxes"...
...Fitas gravadas, quando ouvidas, eram sob o excesso de luz das lâmpadas, antes dos telejornais, dos intermináveis jingles...
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(...)
"Vous, qui passez sans me voir"...
Foram pouco mais de dois minutos, de regressão e dança. A música acabou. Iniciou-se outra: "Vaya con Dios" *...
...- lembrança de despedidas...
...outro esboço de sorriso, outro travo na garganta, umidade nos olhos...
(...)
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"- Rosalírio!"
- ???
"- Rosalírio!"
- Quem me chama?
"- Sou eu, Rosalírio..."
- Eu, quem?!...
"...seu Anjo da Guarda!... Estamos no século XXI, Rosalírio. Vitrolas, nunca mais! - não vê, esse televisor na biblioteca, Rosalírio? Por mero acaso você está ouvindo essas músicas, meu amigo; e lhe dou razão: não são a mesma coisa; "home theatre" nenhum substitui a vitrola de luzinha verde - estrelinha perdida na escuridão da sala, ou do seu Universo particular, Rosalírio. Guarde as lembranças do pleeeéc, do plafff, do issssssssss, dos long-plays... porque nem mesmo as fitas gravadas existem; hoje são os "CDs", os "pen-drives"... Guarde as lembranças, e console-se... - agora você já tem o mote que precisava. Escreva, Rosalírio!"
(...)
Rosalírio Flores sentou-se e encarou o notebook.
Tentaria escrever.
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* "Vous, qui passez sans me voir": Johnny Hess, Paul Misraki, Charles Trenet e Raoul Breton.
* Jean Paques: músico e pianista belga (1901-1974)
* "Vaya con Dios": Larry Russel, Inez James e Buddy Pepper.
* "Clair de Lune": Claude Debussy.
* "Largo, de Xerxes": Georg Friedrich Händel.
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Jan., 18, 2015