Gilson Guimarães da Silveira
Textos

ORAÇÃO DO SAPO SECO (PRA PESCAR PEIXE MIÚDO)
 
  Zuza, terceiro filho dos meus avós paternos (meu pai era o mais velho), eu não sei não... mas, em outras encarnações Zuza deve ter sido alevino ou girino, no mínimo - se não chegou a peixe, ou sapo, ou rã!...
  O cara sabia tudo de peixes miúdos - os hábitos, as manias, a hora em que iam dormir, as horas de recreio... enfim: tudinho.
  ...E deve ter aprendido uma tal "reza" (que só ele conhecia) com algum sapo velho vítima, na juventude, de ação violenta praticada por traíra irascível que o teria achado "muito engraçadinho" por ficar roncando papo em cima da pedra na beira do rio, cujo andar debaixo (parte submersa da pedra) era o local onde ela tirava suas sonecas. Pois é: a traíra abocanhara impiedosamente a... a... (vou dizer, vocês me desculpem) a... bunda do sapo - o que lhe doeu muito; e o sapo, vingando-se, a amaldiçoou por gerações e gerações, sobrando a ira até para quem não tinha nada com a história.
  (...)
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  Mordida de traíra dói. Certo dia pesquei uma delas, mas quem a tirou do anzol e a pendurou na fieira foi Zuza, o experiente.
Naquele dia a intenção dele era pegar o jacaré que aparecera na lagoa duma fazendinha. Fez lá a armadilha necessária e, enquanto isso, ficamos "dando banho nas minhocas". Aliás, eu fiquei, porque, ao fim da tarde, pegara apenas a pequena traíra e três acarás, enquanto ele, conhecedor da "oração", encheu o embornal.
  Meia hora depois de havê-la capturado notei que a traíra estava de boca aberta, na fieira, como as acarás (lógico, pendurados pelas guelras, os peixes abrem as bocas e ficam batendo as brânquias, em desesperada luta pela vida). 
  ...Diabos! Não era para eu fazer aquilo: enfiar o dedo na boca da diaba. Mas fiz. Ressalto: meia hora depois de havê-la fisgado e pendurado!
  ...Não é que a bandida teve a audácia de cravar o serrilhado de dentes no dedo indicador direito da pobre criança  inocente de apenas oito aninhos de idade?!... E ficou, de boca fechada, por alguns segundos; até o momento de abri-la para o último suspiro!
  ...Miserável! Como doeu, aquilo! O dedinho ficou inchadão, latejando. Precisou de mercurocromo.
  (...)
  (Contei isto para alertar aqueles que confiam em tudo e em todos: - Não confiem em traíras!).
  (...)
  Voltemos à vaca-fria.
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  "- Que oração, que sapo seco, que nada! Você pega muito peixe porque já sabe onde eles estão. Duvido que eu não faça o mesmo!" 
  Se não me engano, foi um primo meu, por parte de mãe, o autor do desafio.
  Lá foram os dois.
  (...)
  Hora de lambari, lambari:
  ...Zuza com seu anzol-mosquito ia enchendo o embornal, enquanto a fieira do outro, nem tanto. Por isso mudaram de posição na beira do rio. Mas a coisa não mudou: o embornal enchendo, e a fieira, como dantes. 
  Hora de acará, acará:
  ...no remanso, sol declinante, Zuza pescando, ensacando; e o outro, dando banho na minhoca, lá uma vez ou outra conseguindo fisgar uma incauta. 
  Nova troca de posições... e nada.
  Escureceu. Hora de bagre:
  ...remanso, debaixo da touceira de bambu, os pescadores usando linhas com mais chumbo para os anzóis ficarem arrastando no fundo, à frente das locas... O embornal enchendo cada vez mais, enquanto a fieira, magrinha, ia colecionando pequenos mandis-chorões, de ferrões traiçoeiros.
  Anoiteceu.
  Na primeira beliscada no anzol do desafiante, a isca foi perdida. Então, antes de trocar de posição e de espetar nova isca, o desafiante acendeu um cigarrinho que, àquela altura, também serviria para espantar os borrachudos. Zuza não fumava. "- Vamos trocar de lugar!" - propôs o desafiante; e a troca foi feita.
  Depois disso, duas horas se passaram com Zuza pescando e o outro...
  ...o outro só ficando na vontade: sequer um mandizinho ele conseguiu tirar das águas. Desistiu. "- Chega!" - disse, escabriado, tentando recolher a linha; mas não conseguiu. O caniço amolgava, a linha esticava e não vinha. " - Agarrou em alguma pedra!" - imaginou. No escuro, passou a mão na frente da ponta da vara, e não encontrou a linha. Chamou Zuza, que acendeu a lanterna e acompanhou o facho de luz na trajetória da linha do desafiante; e lá estava ela: pendurada nas folhas altas do bambuzal!... Havia mais ou menos duas horas que ela se enrolara nas folhas do bambuzal!... Com certeza, "arte" dos poderes extraordinários da oração do sapo seco!
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  Zuza nunca a ensinou; a ninguém - nem ao filho.  Mas, ainda que a ensinasse; ainda que alguém a "rezasse" completa, incluindo gestual  imitando o sinal da cruz, 
  ...ainda assim, faltaria o modo correto de "cuspir" na isca: a quantidade certa de perdigotos lançados num jato rápido após pressão da língua contra os dentes. 
  ...Ninguém faria isto com a precisão exigida, a não ser Zuza.
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  A oração do sapo seco é para pescar peixes miúdos, só peixes miúdos... Se alguém, por acaso, a souber, além do Zuza...
  Já a pesca de peixe graúdo... para esta não existe oração, pois é "esportiva": pesca-se e solta-se... Hem?... Não é o que se vê todo dia na televisão?...
  ...Pescam-se... Mas logo em seguida soltam-se... É só para fotografia...
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  Naquela tarde, na lagoa, o jacaré não apareceu para o banho de sol.
         

                            
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Mar., 09, 2013
Guimaraens Esse
Enviado por Guimaraens Esse em 09/03/2013
Alterado em 09/02/2016
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