UM ROSTO NA VIDRAÇA
..1..
Atrás da moldura envidraçada, ela parecia querer comunicar-se com os raros passantes do caminito onde se localizava sua moradia - construção antiga e simples, que mostrava ainda o capricho da época em que fora erigida, mas que agora, e já de algum tempo, carecia de reparos e pintura (pintura branca, como devera ter sido a primeira, há mais de cem anos, quando acolhera os primeiros moradores).
Bonita moça; beleza comparável a atrizes de filmes do cinema mudo - beleza não de uma Louisie Brooks, estrela e modelo de visual avançado; talvez de Clara Bow ou de Corinne Griffith; diria até, não tão bonita quanto a primeira, porém, mais atraente que as duas últimas...
...(comparação difícil quando, de um lado, está a fazê-la quem não é acostumado às nuanças da moda feminil, tão volúvel; e, do outro lado, alguém que, possivelmente, jamais remexeu álbuns de retratos do passado ou assistiu os velhos dramas e tramas da ecran 4:3 em preto e branco, pois são poucos, hoje, os que se interessam por movies sem o recheio dos mais extraordinários efeitos especiais... das maiores violências máximas... dos indestrutíveis supermans e dóceis avatares...).
Bonita moça: de olhos expressivos, acentuados por pintura algo pesada dando-lhe um ar tristonho; lábios finos delineados por batom de cor forte; cabelos repartidos de lado, curtos, pouco abaixo da nuca, levemente ondulados, como ondas de mar sereno.
...Uma bela jovem.
...Sonhadora...
...ou sofredora...
...Era uma expressão enigmática, a dela, atrás da moldura envidraçada, como de alguém que estivesse se escondendo e ao mesmo tempo querendo chamar a atenção dos transeuntes e gritar: "- Levem-me daqui!"
Morando naquele ermo, caminito que se segue a uma estrada larga que leva ao cume da colina, dava impressão de que nenhum dos raros passantes jamais notara sua presença de moça bonita,
...enquanto ela (ninguém mais) ficava na janelinha sobranceira acompanhando, com seus olhos expressivos, o movimento das pessoas.
Nenhuma voz - nenhum grito, nenhum cantar, nenhuma gargalhada - se ouvia, partindo daquela casa.
(...)
..2..
O rapaz ausente, de uns anos para cá dera-se a visitar alguns familiares seus que foram morar no caminito, pouco mais adiante da moradia branca. Como os raros passantes, também ele, raramente frequentava o ermo; fazia-o mais por obrigação de parente.
Nesses anos, se outros nâo haviam reparado na moça, principalmente no seu rosto, ele, entretanto, o fez; e o fez todas as vezes que ali passou, na ida e na volta... E ela, como que sabendo o momento da sua passagem, sempre trocou com o rapaz olhares significativos, que o impressionavam. Mas aquela mudez...
...Havia sempre a lembrança de uma Cinderela, uma Branca de Neve, Rapunzel...
Poderia ser todas, aquela moça. A certo momento ele começou a se imaginar o Príncipe que a arrebataria dali para viverem eternamente felizes.
...Entretanto, jamais teve coragem de se aproximar da janelinha e bater no vidro.
...Ausentava-se, mais uma vez...
(...)
...Mais uma vez, no outro ano, quando passava, olhava para o lado, para a janelinha... e a moça também, a olhá-lo.
(...)
Foram alguns anos assim.
Já se acentuavam, naquele rosto, as marcas do cansaço; já não se notavam tanto esmero no pentear-se, no pintar-se. Estava envelhecendo, estava aos poucos... desaparecendo. Toda sua beleza estava se esvaindo.
O rapaz sentira isto no ano anterior. Sentira muito mais agora, da última vez, quando, ao passar, não a vira claramente na janela. Estranhou, mas seguiu em frente, para visitar os seus.
Na volta, uma chuva fina, inesperada e persistente, o surpreendeu, e ele quis se apressar. Entretanto, um forte sentimento o fez parar, de supetão, defronte da moradia branca - quando então percebeu que algo fora colocado próximo à vidraça da janelinha, que lhe não permitia ver se a moça estava, ou não, do outro lado. Não via seu rosto. A atrapalhar mais ainda, o embaciado do vidro, provocado pela mudança térmica, devido à chuva... Apesar disso, ele sentia sua presença, sabia que ela estava ali, a observá-lo...
Desta vez, então, ele se aproximou.
...Não se enganara: lá estava ela, de pé, do mesmo jeito que outrora; contudo, os olhos, não mais eram os mesmos, atraentes; os lábios, sem cor; cabelos esbranquiçados... Ela, envelhecida... quase sumindo. A voz...
...A voz não lhe saiu da boca. Aliás, como nunca saíra, pois a sua voz, o tempo todo, estivera apenas no olhar.
(...)
Com muito esforço ele tentou "recuperar" a expressão daqueles olhos.
...Foi em vão.
Acabara, o encanto.
(...)
O rapaz deixou, junto à janelinha, o botão de rosa que trazia à mão e que se desprendera do buquê levado aos familiares que moravam mais adiante da moradia branca.
..3..
Na lápide de mármore branco, já carcomida pelo tempo, ainda se consegue ler:
* 1912 + 1929
Martha Ephigenia,
flor do nosso jardim,
tão cedo despetalada.
Nosso amor eterno.
Seus pais.
(...)
Algum parente, alguém que em tempo mais recente um dia foi ao caminito para visitar a tumba de Martha Ephigenia, deixara ali, dentro do nicho fechado de vidro, o retrato tirado (quem sabe?) já ao fim da sua existência, na flor dos seus dezesseis ou dezessete anos.
(...)
................................................................................................
Na derradeira vez, o rapaz ainda procurou, no retrato que tanto o impressionara, a intensidade do olhar da moça sepultada naquele túmulo antigo e branco. Mas se deparou com uma barreira por trás da vidraça - o papel em que, certa feita, fora revelada a fotografia, agora irremediavelmente desbotada pela luz intensa do sol matutino dos últimos cinco ou seis anos.
(...)
Deixou-lhe o botâo de rosa.
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Mar., 05.2013