Gilson Guimarães da Silveira
Textos
DONA ESPERANÇA INOCÊNCIA
Morávamos numa casa grande e antiga, de quintal também grande, onde havia muitas fruteiras e eram criados porcos, galinhas, marrecos, patos, coelhos, e até, em certa ocasião, um bezerro, de nome Trampolim, mal-humorado como ele só.
...(O bezerro, sem-vergonha, tinha tudo de bom na vida: sombra, água fresca, comidinha servida na hora certa... Fartava-se do melhor, mas, ainda assim, gostava de bancar o valentão com seus benfeitores, dando carreiras em quem se aproximasse. Era ele e um tal de Perigoso, cachorrão malhado, da cor de mistura mal mexida de angu mole com caldo de feijão preto. Perigoso tinha dentes "caninos" meeesmo!, de verdade!, que apreciariam muito abocanhar e rasgar algumas canelas descuidadas que por desventura lhe aparecessem ao alcance. Trampolim não era tão ameaçador; ficava só nos carreirões aos incautos; tinha dentes também, é lógico; mas ele os utilizava somente nas mastigações de praxe, de capins e rações; dentes exclusivamente "bovinos", destinados a mastigar, mastigar, mastigar, facilitando a futura ruminação).
Morávamos na casa grande, que nos abrigava - a nós, e a uma porçâo de gaiolas com passarinhos e, vez ou outra, a um aquário, feito de vidro de azeitonas, com barrigudinhos coloridos trazidos do riozinho barrento. (Não por maus tratos, não pelo querer da garotada; mas, poucas horas depois, ou no dia seguinte, ou no outro dia seguinte ao que foram sequestrados do riozinho, os pobres peixinhos vestidos em escamas de diversas cores, mais ou menos parecendo com fantasia de arlequim apaixonado, os pobres peixinhos, como eu ia dizendo, sucumbiam, virando, literalmente, de pernas pro ar, boiando de barriga pro céu. Coitados! Não se prestavam a ser azeitonas, não se adaptavam àquele novo habitat, reduzidíssimo de tamanho e sem larvas para os alimentar).
No quintal, cachorros grandes e pequenos, gatos grandes e pequenos, passarinhada solta e um enorme, variado minizoológico, constituído de gambás e outros bichos com e sem orelhas, pois que todos lá viviam em perfeita harmonia: morcegos, cobras, lagartos, lagartas, lagartixas, minhocas, besouros, borboletas, moscas, mosquitos, mariposas, sapos, pererecas e quantos mais possíveis e passíveis de desfrutarem do oxigênio puro daquele pequeno mundo ao qual os de fora (os não moradores) chamavam de "chácara". Nós não víamos aquilo como chácara. Chácara seria um mundo ainda maior.
De resto, a água límpida, fresca e leve que vinha desde uma distância de dois quilômetros até ali: a água da "Fonte do Amor".
(...)
Acho que, por tudo isso, sempre vivemos tão bem naquela vivenda.
...Acho que, por tudo isso, fazíamos tantos saraus: acordeon, gaita, violão, violino, piano, cantos...
...E não só esporadicamente; e não só por motivo especial; mas sempre.
(...)
* * *
Nos tempos ainda do fogão a lenha, das linguiças, chouriços e lombinhos pendurados no fumeiro, apareceu-nos Dona Esperança: baixinha; preta; não preta retinta, mas avermelhada, qual goiabada escurecida na quentura do tacho; velhinha de faces lisas, sem rugas, lenço branco amarrado à cabeça (lembrete dos singelos turbantes das origens escravas), avental branco e comprido, com um bolso dianteiro.
...Chegou para ser a lavadeira. Com aquela idade... curvadinha para a frente (possível resultado das muitas tarefas de capinas, das muitas catações de café e varrições de terreiros), olhos parcialmente tomados pela catarata periférica, boca meio murcha, sem vestígios de cacos, gengivas fazendo prestância de dentes...
...Calma, de falar baixinho, de bom humor; que nos anos seguintes se mostrou sempre fiel, honrada e dócil como uma criança ingênua.
(...)
Conviveu conosco por mais de duas décadas.
Asseada, suas vestes retinham, no entanto, um tico do aroma do vício, da fumaça do pito. Tão só. Aquele era o seu perfume; não repugnante; nem, muito menos, perturbador; que jamais se misturou ao azedo dos suores, à fedentina dum corpo mal lavado, porque ela não os permitia em si.
Entre um lavar, um quarar, um esperar, sentava-se num banquinho para umas pitadas no cachimbo barato, munido de fumo de rolo.
Esfregou muitas roupas, Dona Esperança.
(...)
Alma limpa num corpo limpo.
Lembrança de tanta bonomia traz recordações de coisas que ela fazia com inefável pureza - como na ocasião em que foi ao retratista.
(...)
* * *
Dona Esperança precisava tirar retrato para fazer sua carteira de identidade, e o patrão mandou sua filha mais velha acompanhá-la, pois a velhinha não estava acostumada a tais expedientes.
Foram as duas, num início de tarde, ela ditando o ritmo da andadura, no passinho que lhe permitiam as pernas cansadas, em cujos pés os respectivos joanetes sofriam os horrores que lhe infligiam as tiras ressecadas das sandálias gastas e cambadas. Foram, portanto, num passinho "espera-aí-que-eu-já-chego-pois-tá-me-doendo-aqui-nos-calos".
Carregou consigo, como costumeiramente o fazia, todos os petrechos necessários à suavizante pitada. E porque nos lugares pequenos as pessoas se conhecem e param nas ruas para um ligeiro "como-vai-a-senhora-eu-vou-bem-e-você?", chegaram à porta do retratista quinze minutos depois de terem saído de casa.
...Massada, aquele negócio de tirar retrato - deve ter pensado Dona Esperança. Mas ela foi até lá e pronto, estava resolvido o problema.
À frente da casa do retratista, teve vontade de fumar.
...Enfiou a mão no bolso do avental,
...pegou o cachimbo,
...o canivetinho,
...o naco de fumo de rolo,
...virou-se para a mocinha que a acompanhava, e disse:
"- Menina! Vai lá, tira o retrato pra mim, enquanto eu pito!"
(...)
.................................................................................................
Esperança, querida Esperança!
...Se se chamasse Inocência, o nome também lhe cairia bem.
(...)
As gengivas faziam prestância de dentes.
...Quando lhe ofereciam sorvete, aceitava. Colocava-o na canequinha, pegava a frigideira, colocava um pouco d'água,
...e só "chupava" o sorvete depois de esquentá-lo em banho-maria.
(...)
...Acho que, por tudo isso, sempre vivemos felizes naquela casa.
---<<)){o}((>>---
Dez.22, 2012
Morávamos na casa grande, que nos abrigava - a nós, e a uma porçâo de gaiolas com passarinhos e, vez ou outra, a um aquário, feito de vidro de azeitonas, com barrigudinhos coloridos trazidos do riozinho barrento. (Não por maus tratos, não pelo querer da garotada; mas, poucas horas depois, ou no dia seguinte, ou no outro dia seguinte ao que foram sequestrados do riozinho, os pobres peixinhos vestidos em escamas de diversas cores, mais ou menos parecendo com fantasia de arlequim apaixonado, os pobres peixinhos, como eu ia dizendo, sucumbiam, virando, literalmente, de pernas pro ar, boiando de barriga pro céu. Coitados! Não se prestavam a ser azeitonas, não se adaptavam àquele novo habitat, reduzidíssimo de tamanho e sem larvas para os alimentar).
No quintal, cachorros grandes e pequenos, gatos grandes e pequenos, passarinhada solta e um enorme, variado minizoológico, constituído de gambás e outros bichos com e sem orelhas, pois que todos lá viviam em perfeita harmonia: morcegos, cobras, lagartos, lagartas, lagartixas, minhocas, besouros, borboletas, moscas, mosquitos, mariposas, sapos, pererecas e quantos mais possíveis e passíveis de desfrutarem do oxigênio puro daquele pequeno mundo ao qual os de fora (os não moradores) chamavam de "chácara". Nós não víamos aquilo como chácara. Chácara seria um mundo ainda maior.
De resto, a água límpida, fresca e leve que vinha desde uma distância de dois quilômetros até ali: a água da "Fonte do Amor".
(...)
Acho que, por tudo isso, sempre vivemos tão bem naquela vivenda.
...Acho que, por tudo isso, fazíamos tantos saraus: acordeon, gaita, violão, violino, piano, cantos...
...E não só esporadicamente; e não só por motivo especial; mas sempre.
(...)
* * *
Nos tempos ainda do fogão a lenha, das linguiças, chouriços e lombinhos pendurados no fumeiro, apareceu-nos Dona Esperança: baixinha; preta; não preta retinta, mas avermelhada, qual goiabada escurecida na quentura do tacho; velhinha de faces lisas, sem rugas, lenço branco amarrado à cabeça (lembrete dos singelos turbantes das origens escravas), avental branco e comprido, com um bolso dianteiro.
...Chegou para ser a lavadeira. Com aquela idade... curvadinha para a frente (possível resultado das muitas tarefas de capinas, das muitas catações de café e varrições de terreiros), olhos parcialmente tomados pela catarata periférica, boca meio murcha, sem vestígios de cacos, gengivas fazendo prestância de dentes...
...Calma, de falar baixinho, de bom humor; que nos anos seguintes se mostrou sempre fiel, honrada e dócil como uma criança ingênua.
(...)
Conviveu conosco por mais de duas décadas.
Asseada, suas vestes retinham, no entanto, um tico do aroma do vício, da fumaça do pito. Tão só. Aquele era o seu perfume; não repugnante; nem, muito menos, perturbador; que jamais se misturou ao azedo dos suores, à fedentina dum corpo mal lavado, porque ela não os permitia em si.
Entre um lavar, um quarar, um esperar, sentava-se num banquinho para umas pitadas no cachimbo barato, munido de fumo de rolo.
Esfregou muitas roupas, Dona Esperança.
(...)
Alma limpa num corpo limpo.
Lembrança de tanta bonomia traz recordações de coisas que ela fazia com inefável pureza - como na ocasião em que foi ao retratista.
(...)
* * *
Dona Esperança precisava tirar retrato para fazer sua carteira de identidade, e o patrão mandou sua filha mais velha acompanhá-la, pois a velhinha não estava acostumada a tais expedientes.
Foram as duas, num início de tarde, ela ditando o ritmo da andadura, no passinho que lhe permitiam as pernas cansadas, em cujos pés os respectivos joanetes sofriam os horrores que lhe infligiam as tiras ressecadas das sandálias gastas e cambadas. Foram, portanto, num passinho "espera-aí-que-eu-já-chego-pois-tá-me-doendo-aqui-nos-calos".
Carregou consigo, como costumeiramente o fazia, todos os petrechos necessários à suavizante pitada. E porque nos lugares pequenos as pessoas se conhecem e param nas ruas para um ligeiro "como-vai-a-senhora-eu-vou-bem-e-você?", chegaram à porta do retratista quinze minutos depois de terem saído de casa.
...Massada, aquele negócio de tirar retrato - deve ter pensado Dona Esperança. Mas ela foi até lá e pronto, estava resolvido o problema.
À frente da casa do retratista, teve vontade de fumar.
...Enfiou a mão no bolso do avental,
...pegou o cachimbo,
...o canivetinho,
...o naco de fumo de rolo,
...virou-se para a mocinha que a acompanhava, e disse:
"- Menina! Vai lá, tira o retrato pra mim, enquanto eu pito!"
(...)
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Esperança, querida Esperança!
...Se se chamasse Inocência, o nome também lhe cairia bem.
(...)
As gengivas faziam prestância de dentes.
...Quando lhe ofereciam sorvete, aceitava. Colocava-o na canequinha, pegava a frigideira, colocava um pouco d'água,
...e só "chupava" o sorvete depois de esquentá-lo em banho-maria.
(...)
...Acho que, por tudo isso, sempre vivemos felizes naquela casa.
---<<)){o}((>>---
Dez.22, 2012
Guimaraens Esse
Enviado por Guimaraens Esse em 22/12/2012
Alterado em 18/01/2016
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