CONSTELLATION, LAMBRETTA E SANDWICH
"- Suas filhas serão professoras. Os filhos, um será médico; o outro, escritor, e viajará muito" - disse a cartomante amadora.
Nem foi preciso "pagar pra ver", como no jogo de pôquer: a consulta foi grátis; a ledora ofereceu; era amiga de mamãe.
Éramos criança. Desde então, tudo ficou esquecido, até que me recordei.
(...)
Os anos se passaram. Minhas duas irmãs se tornaram professoras, e o meu irmão, médico.
Quanto a mim, fui escrevente, escrivão, escriturário... Hoje, eu me acho escrevedor - ou, pelo menos, mais um dos que vêm tentando não ser escrevinhador.
Se escritor não sou, se contrariei a sorte, as cartas não erraram de todo: falaram nas muitas viagens. Acertaram!
Meu Deus, como já viajei!... Agora não, pois diminuí as cotas, não tenho o mesmo entusiasmo. É muita gente a tropeçar nas pernas umas das outras. Quer-se apreciar uma obra de arte, um lugar, não se consegue, não há tempo suficiente; tem-se que seguir o grupo em trote acelerado, torcendo o pescoço - direita, esquerda, direita, esquerda, flash, flash, flash!... -, chegando-se ao hotel procurando unguento para curar o torcicolo e com vontade de não sair no dia seguinte.
(...)
Que saudade da Panair do Brasil: sou do tempo dos Constellations - aviões bonitos, velozes (quatrocentos e cinquenta, quinhentos e cinquenta quilômetros por hora, cruzando o Atlântico... Eram, ou não, uns bólides?!)...
(...)
...Volare, oh, oh! *
Cantare, oh, oh,oh,oh!
Nel blu, dipinto di blu
(...)
...Sou do tempo das Lambrettas - inigualáveis e lindas motonetas que "convidavam" os românticos ao bordejo pelas ruas de Roma, levando-os até a "Fontana di Trevi" para ali os casaisinhos atirarem suas moedas e fazerem seus pedidos...
(...)
Three coins in the fountain **
Each one seeking happiness
(...)
...Capri, Anacapri: dos altos daqueles montes, o deslumbrador Tirreno, tranquilo quase sempre, mas afoito quando lhe perturba o Mistral: os arrepios que eu sentia nas alturas das veredas, ao olhar, lá embaixo, o azul marinho, rendado de branco, batendo contra os rochedos, na eterna disputa para ver quem o mais forte: o mar? O rochedo?... Ou Tibério?!...
...("Timbério cattivo, Timbério mal'occhio, Timbério roba!" - imperador que, tendo vivido centenas e centenas de anos antes, quem sabe ainda faz brotar expressões tais como as que saíram da boca da bella fiore Gioia, ocasional recepcionista do Dr. Axel Munthe, que ali se fixaria, erguendo a sua "Villa San Michele")...
...Tibério, na "Villa Jovis", teria pensado nisso? em ser o mais poderoso dos três - mar, rochedo, soberano?...
(...)
"La Piazzeta": certo dia, adormeci ao pôr do Sol, ouvindo música e conversação; dia seguinte acordei ao seu nascer, ouvindo silêncio; e a praça, ali, próxima, bem próxima... Olhei o relógio da torre: era cedo, cedo; mas dali a pouco já não seria. Andaria, andaria pela ilha, para depois almoçar sob os limoeiros do "La Paolina".
(...)
...........................................................................................
França...
...Na primeira vez que fui ao Louvre e dei de cara com a Mona Lisa, "vi" o Da Vinci regressando ao seu estúdio e expressando entusiasmo pelo David, de Michelangelo: "- Visitei o Michel. Imagine você, Mona: o David é tão perfeito que, não só o Michel, mas, todos nós que o visitamos tivemos vontade de martelá-lo e gritar: "Perché non parli?"... É maravilhoso, o sujeito!"
...(Na época em que isso se deu, Mona Lisa não tinha aquele sorrisinho sem-vergonha, maroto, a lhe decorar as feições. Isto só lhe ficou estampado depois que Leonardo, entusiasmadão, exclamou, erroneamente, referindo-se ao David, e não ao Moisés: "Perché non parli?"
...(La Gioconda, até então recatada, pensou consigo mesma:
"- Ô, Leo?! 'Tá ficando lelé? Você andou foi "olhando as coisas" do David... e o cara, com aquele jeitinho de segurar a pedra e com aquele "besourinho" pousado na púbis... "parlare"?... Sei não!...)
...(E assim ficou ela, sorrindo para a posteridade, sem que Da Vinci percebesse).
(...)
Em Versalhes, naquelas salas, naqueles aposentos, sempre vi (por questão de simpatia que não sei explicar) o infausto Luís XVI; o jovem Luís ainda no tempo em que reinava seu avô; o criançola Luís, mais preocupado em mexer com as máquinas dos relógios do que com a Maria Antonieta...
...Tanta riqueza naqueles salões... De fazer perder a cabeça...
(...)
Já chega. Se eu for descrever meus sentimentos em todo lugar que passei, me perderei em detalhes, relatarei coisas extensas e inimagináveis; me estenderei num Saara sem oásis, me perderei nas areias, ficarei sem fôlego, cansado, seco de águas e de ossos, não terminarei, acabarei...
...Oh, China de Confúcio!... Oh, Índia de Gandhi!...
...Oh, Portugal de Saramago!...
...Oh, Havaí! dos vulcões e da Debra Paget de pele extremamente clara e olhos extremamente verdes, improvisada havaiana a desfilar descalça no ritual das brasas...
(...)
............................................................................................
Meu sogro, farmacêutico prático, exerceu a profissão durante muitos anos num pequeno povoado rural; e contou ter ouvido, certo dia, a seguinte conversa entre dois sitiantes, fregueses que ocasionalmente estavam em sua presença:
"- Sanduíche de sardinha é bom!
"- É bom mesmo? Você já comeu?...
"- Não. Nunca comi não. Mas já vi cumpade Joca comendo!..."
(...)
Que tem a ver a tal conversa com os meus passeios pelo mundo?
...Se alguém, algum dia, me perguntar: "- É mesmo? Você conhece tanta terra assim?" - eu lhe responderei: "- Não. Nunca fui a lugar nenhum desses. Mas já vi em filmes, em fotografias, já li, já imaginei!..."
............................................................................................
Penso che un sogno cosi non ritorni mai più *
(...)
Volare, oh, oh!
Cantare, oh, oh, oh, oh!
Nel blu, dipinto di blu
(...)
---<<(({o}((>>---
(*) "Nel blu dipinto di blu (Volare)" - música de Domenico Modugno e Franco Migliacci.
(**) "Three coins in the fountain" - música de Sammy Cahn e Jule Styne.
Abr.06.2012